sexta-feira, 8 de junho de 2012

Caso Luziene: doze anos a espera que justiça seja feita

Uma prova que a justiça não é a mesma para ricos e pobres.

26 de Setembro de 2011 14:14
Escrito por Tião Vitor (@tiaovitor) Seg, 26 de Setembro de 2011 13:35
Advogado Gumercindo Marques teve atuação decisiva na defesa dos três inocentes // Foto: Tião VitorAdvogado Gumercindo Marques teve atuação decisiva na defesa dos três inocentes // Foto: Tião Vitor
Há crimes que marcam tão profundamente uma sociedade que deixam cicatrizes que nunca se apagam. Há outros em que permanecem como feridas abertas, sangrando e provocando dor muitos anos depois a espera que algo seja feito para cicatrizar naturalmente. O crime que vitimou a jovem Luziene Queiróz, de 17 anos é um destes. O caso aconteceu na noite do dia 21 de maio de 1999, mas até hoje, doze anos depois, os culpados não foram punidos, apesar de serem publicamente conhecidos.

A impunidade se deu, principalmente por incompetência policial e pelo interesse criminoso de jogar a culpa em três pobres trabalhadores. Os verdadeiros culpados, ao que parece, nunca serão condenados.

O “Caso Luziene”, como ficou conhecido volta à tona agora pelas mãos de um de seus principais atores, o advogado Gumercindo Gomes. Ele é um daqueles homens obstinados por justiça. Sem sua atuação e a de seu sócio, o também advogado Odilardo Marques, inocentes estariam até hoje pagando por um crime que não cometeram.

Gumercindo deve lançar um livro sobre o caso em breve. O título será: “Como não se fazer um processo penal”. Ele afirma que será um documento onde serão mostrados todos os erros cometidos no processo que acabou por acusar os jovens irmãos Hernandes e Roney da Silva e seu vizinho Ozias Teixeira.

Gumercindo esclarece que um dos erros mais grotesco se deu a partir da atuação da Polícia Militar (PM) no caso. Quando o corpo da jovem foi encontrado em um matagal próximo à igreja não foi a Polícia Civil que iniciou o procedimento de investigação, foi a PM comandada pelo então tenente Wherles Fernandes da Rocha. Rocha hoje é major da reserva e deputado estadual pelo PSDB.
Corpo de Luziene foi encontrado em matagal perto do centro da cidade // Foto: Arquivo de Gumercindo Gomes
A PM não procedeu como se determina em casos de homicídio e não fez o isolamento da área. Pelo contrário, a atuação dos policiais violou o local e dificultou a coleta de provas. Também a PM, que conduziu a maior parte das investigações do inquérito, apesar de haver delegado de Polícia Civil na cidade, não solicitou a ida de peritos do Instituto de Criminalística e do Instituto Médico Legal para elaborar laudos e colher elementos que pudessem vir a identificar a autoria do crime. O corpo de Luziene foi examinado no hospital da cidade por médicos sem o conhecimento técnico exigido para aquela atividade. “Para se ter uma ideia do absurdo que foi isso, a primeira coisa que o médico fez foi pedir que lavassem o corpo de Luziene, apagando grande parte das provas materiais que poderiam estar ali”, relatou o advogado.






Outro fato que parece ter sido intencionalmente ignorado pela PM e, em seguida pela Polícia Civil, pelo promotor de Justiça que atuou no caso e pelo Judiciário, foi o álibi dos três. Havia dezenas de testemunhas que garantiam que Roney e Ozias não estavam na cidade no dia e hora do crime. Eles estavam no seringal Liberdade, às margens do rio Macauã (cerca de cinco horas de viagem de barco de Sena Madureira).

Hernandes, até então o terceiro acusado, chegou em Sena no final da tarde do dia 21 de maio de 1999. Luziene teria sido morta horas depois, por volta das 11h30 e 1 hora da madrugada já do dia 22.

A única coisa que os ligava ao crime era o testemunho de dois menores, um menino e uma menina, ambos de 14 anos. Tais testemunhos, apesar de inconsistentes, foram considerados como verdade absoluta pelos condutores do inquérito policial. A começar pelo fato de ambos afirmarem estar na cena do crime, mas não terem visto um ao outro. O mais estranho é que a menina apresentava distúrbios psicológicos e o garoto não conseguia repetir o mesmo testemunho mais de uma vez.

“Em alguns momentos ele dizia estar escondido em um local próximo à quadra de esporte da escola Plácido de Castro observando por um lugar que, ao menos um ano antes, tinha um corredor. Acontece que esse corredor não existia mais o que tornava impossível a visualização do crime daquele ângulo. Já em outro momento, ele garante que estava em uma bicicleta do outro lado da rua e disse ter visto detalhes, inclusive, dos assassinos deitados em cima de Luziene. O problema é que havia uma mureta que só permitia que se visse as pessoas se elas estivessem em pé, se deitassem também saiam do ângulo de visão”, relatou Gumercindo. Ele afirma que esses foram apenas alguns das inconsistências dessas duas testemunhas, mas que foram ignoradas pela Polícia Militar, pela Polícia Civil, pelo Ministério Público e pelo Judiciário.

Para completar, a menina testemunha afirma ter participado diretamente do crime, razão pela qual ela passa a cumprir medida socioeducativa.

Outra prova de que o depoimento dos dois menores não deveria ser levado a sério é o fato de que o crime não teria sido cometido naquele local. Isso era fácil de comprovar, haja vista que Luziene foi morta a facadas. Uma delas atingiu a veia jugular, apartando-a. Esse ferimento provocaria um grande sangramento e não havia sangue suficiente no local que comprovasse isso. Outra facada traspassou o coração. Da mesma forma, haveria grande sangramento. A terceira facada foi na região abdominal, atingindo órgãos vitais e provocando, também, grande sangramento. Se o crime tivesse ocorrido ali a quantidade de sangue seria muito superior. A PM e Polícia Civil e demais envolvidos na investigação deveriam saber disso, mesmo assim, essa importante questão foi ignorada.

Linha de investigação se baseia na tortura

Wherles Rocha era tenente e comandante da PM de Sena Madureira na época do crime

Os erros processuais se seguem. Enumerá-los aqui tomaria muito espaço. Nos ateremos apenas às questões de maior relevância, como as torturas sofridas pelo três suspeitos.

De acordo com Gumercindo Gomes, Hernandes, Roney e Ozias foram vítimas de torturas físicas e psicológicas. Ele garante que Hernandes e Roney sofreram choques elétricos, socos e outras agressões dentro do quartel da PM. Seus torturadores eram diversos policiais militares comandados pelo tenente Rocha.

Ozias sofreu algo pior que as dores da violência na carne. Ele foi impiedosamente torturado psicologicamente. Em seu depoimento, ele contou que foi tirado da delegacia em uma madrugada e levado para a estrada (BR-364) pelo tenente Rocha. No carro havia o motorista, outra pessoa vestida à paisana no lado do passageiro na parte da frente do carro. Ele foi colocado no banco traseiro e sentou ao lado de uma mulher. Em seguida, sentou o tenente Rocha, deixando Ozias no meio.

No trajeto, a viatura vinha se comunicando com outra, onde o tenente Rocha exigia que ele confessasse, pois só assim escaparia da morte, já que seus amigos teriam sido levados para outra viatura e já estariam mortos. “Esse foi o relato feito por ele em juízo”, garantiu Gumercindo.

Segundo esse relato, o tenente Rocha teria afirmado a Ozias que o passageiro da frente era o promotor de Justiça do Caso e que a mulher ao seu lado era a juíza. “O Ozias não sabia quem era promotor ou quem era a juíza, ele só sabia que tinha um promotor e uma juíza no carro”. Tal informação serviria para intimidar ainda mais Ozias, fazendo-o crer que a sua possível execução contaria com o apoio das principais autoridades da cidade. “Depois ele soube que essa mulher que estava no carro era uma policial conhecida por Mariazinha, que é uma policial de Rio Branco. Essa Mariazinha foi acusada pela Maria Segobe, que era a testemunha e que estava cumprindo medida socioeducativa, de tê-la torturado para que ela respaldasse o depoimento do Sinval, que era a outra testemunha”.

Vindo na estrada para o local onde ocorreria a suposta execução, Ozias era sempre instigado a “confessar” o crime. “Ele dizia para ele confessar, se não ia ser morto. Ele respondia: mas eu não estava, eu não sei”.

Quando foi chegado ao local onde Ozias seria morto, por volta de meia noite, parou a outra viatura da PM atrás. Ozias relatou que ouviu alguns tiros e gritos como se fossem gritos de morte. Rocha teria mandado que Ozias descesse do carro. “Ele não conseguiu descer porque estava paralisado. Ele não conseguia se mexer de medo, foi preciso ser retirado do carro”.

O ponto mais apavorante e cruel do relato de Ozias sobre a tortura psicológica vem a seguir, quando outro oficial da PM se aproximou da que ele estava trazendo nas mãos um calção e uma camiseta manchada de alguma coisa que representaria sangue. Daí, a conversa se deu entre o tenente Rocha e o oficial. O diálogo foi mais ou menos assim: “E aí, que tal?”, pergunta Rocha. O outro retruca: “Tem que está só arquejando, mas já estão mortos. Vamos levar esse aí já lá pra dentro [do mato]”.

Gumercindo conta que Ozias desmaiava toda vez que ouvia o relato. A conversa continuava entre os dois policiais, inclusive afirmando que ele poderia ser morto naquele mesmo local, seguido sempre de desmaios de Ozias. A certa altura, ele resolveu concordar com uma confissão e teria dito para os policiais que concordaria com tudo que dissessem. Ozias foi levado de volta ao quartel da PM onde permaneceu sofrendo novas torturas psicológicas.

Naquele momento, Gumercindo defendia apenas Ozias e fora convidado a entrar no caso por populares de Sena Madureira que acreditavam na inocência dos três acusados. Algum tempo depois, com o falecimento do advogado de Hernandes e Roney, Gumercindo passa a fazer a defesa dos três. Foi aí que tomou conhecimento das torturas que eles também foram vítimas. “O Roney, inclusive, até hoje tem o peito direito como se fosse o seio de uma adolescente. Ele contou que foi um murro dado com as costas da mão que foi dado por um sargento, o sargento Caetano e que, a partir daí, isso vem crescendo e se tornou um nódulo”.

O advogado contou que os seus dois novos clientes relataram choques elétricos na região dos olhos, na região escrotal e sufocamento com saco plástico, tal qual o que foi feito no filme Tropa de Elite. Essas torturas teriam acontecido no quartel da Polícia Militar de Sena Madureira. Roney e Hernandes não teriam visto seus algozes, pois estavam todos encapuzados.

Inquérito sobre torturas não deu em nada

Apesar dos relatos fortes e contundentes, o inquérito que apurou as torturas acabou em nada. O tenente Rocha saiu ileso e hoje é major e deputado estadual. Em juízo ele negou todas as acusações. Afirmou que retirou Ozias de sua cela, mas que isso se deu a mando da juíza do caso que teria determinado sua transferência para o quartel da PM temendo que ele fosse vítima de linchamento. Rocha disse ainda que tudo não passou de mentira arquitetada pela defesa do caso. A juíza do caso não foi ouvida no Inquérito Policial Militar (IPM), portanto, não foi possível confirmar a versão de Rocha.

Apesar disso, as reconstituições das torturas apontaram para a veracidade das acusações feitas por Hernandes, Roney e Ozias.

Esse inquérito foi realizado mais de dois anos depois que as torturas teriam ocorrido. O relatório do IPM que apurou o caso foi inconclusivo. “O IPM dizia que não era possível, mais de dois anos depois encontrar marcas da tortura. O caso do Ozias, por exemplo, não seria possível encontrar marcas nem se fosse no dia seguinte, pois a tortura nele foi psicológica”.

Caso segue em apuração

Hernandes, Roney e Ozias ficaram presos dois anos, três meses e treze dias acusados de um crime que não cometeram. Eles foram indenizados pelo Estado e receberam a quantia de R$ 42,2 mil, cada.

A partir da entrada de Gumercindo no caso, ficou provado que eles eram inocentes. Houve um julgamento e eles foram inocentados. No mesmo julgamento, o juiz do caso determinou que houvesse uma nova investigação que apontou para outros acusados, um deles filho da ex-prefeita de Sena Madureira, Toinha Vieira, que era menor de idade na época.

Até o momento nenhum dos novos suspeitos foram punidos e o “Caso Luziene” segue como um dos mais controversos da história policial do Acre e também como um exemplo de como a atuação criminosa de agentes públicos pode contribuir para a impunidade.

Talvez, com a publicação do livro de Gumercindo, o Judiciário brasileiro tome alguma providência, mas passado tanto tempo, esperar que isso seja feito é pedir demais.

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